sábado, 17 de janeiro de 2009

Surfar as Ondas da Vida

Recentemente, em São Paulo para um retiro, a minha anfitriã me levou para o litoral para a minha segunda aula de surfe. Imagine, eu com os meus vinte-e-tantos-bem-passados anos de idade e falta de coordenação quase total, numa aula de surfe. Que divertido! Que lição de Zen!
Quase sem onda, mesmo assim, na primeira aula (em dezembro de ano passado), consegui ficar em pé na prancha justamente o tempo suficiente para uma foto (meio-segundo? Um segundo inteiro?). A fotógrafa (a minha amiga) foi bem habilidosa… E como me diverti!
É uma maravilha sentir a força da água, a corrente levando a gente. É uma grande aprendizagem perceber a resistência no corpo, o medo de entregar-se - de deixar-se ser levado. No começo, agarrava a prancha com força total… Mas que maravilha a sensação de liberdade, ao relaxar o corpo e começar a tornar-me uno com a prancha e a água! E como é forte a descoberta que, soltando o corpo, entregando o peso para a prancha (e a água) é quando a gente passa a ter a maior estabilidade. Com maior estabilidade (o corpo solto e entregue), descobri que tinha mais espaço até para manobrar a prancha, exercendo o meu ‘livre arbítrio’, dentro da minha limitadíssima capacidade!
Descobri que não precisava ter medo de cair na água - que a água me acolhia até com uma certa suavidade quando tombava da prancha (ou seja, toda vez que tentava ficar em pé nela…). Também ficou clara a necessidade de manter a plena atenção, pois era necessário cuidar para não cair de cabeça e arriscar batê-la no fundo do oceano - que, nestas alturas, estava bastante próximo… Também era importante proteger a cabeça na hora de voltar à superfície depois de cair na água - evitando o risco de batê-la na prancha.
E não é a mesma coisa com a vida? Quanta resistência fazemos! Como sofremos de medo de nos entregar, de nos deixar ser levados pela grande corrente da vida! Que batalha que é para aprender a nos soltar - soltar o espírito, soltar a mente, abrir mão da tentativa de controlar tudo - abrir mão da rigidez, das opiniões, da falsa segurança daquela ‘zona de conforto’, do conforto do conhecido e da familiaridade .
Mas foi somente ao relaxar o corpo que pude perceber que estava segura na mão da água. E é somente ao relaxar o ‘espírito’, como em zazen, onde abrimos mão dos pensamentos, que podemos perceber que estamos seguros na mão do sagrado - que somos parte integrante dessa mão - nunca fomos separados dela. E é justamente na hora em que conseguimos nos entregar ao sagrado, deixando que a grande correnteza da vida se manifeste, que ganhamos o espaço para exercitar o nosso livre arbítrio, manobrando as nossas ‘pranchas’, aproveitando o máximo que podemos da onda que nos leva até a ‘praia’.
Enquanto resistimos, tentando ir contra a correnteza, as ondas vão-nos esmagar, mas, ao soltarmos, podemos nos divertir bastante durante a nossa jornada - surfando as ondas da vida. Podemos descobrir que errar não precisa ser o fim do mundo - pois não somente estamos sendo carregados nas mãos do universo, somos uma parte integrante do próprio universo, inseperáveis.
Refleti muito também sobre a diferença entre ter “metas” e “objetivos” na minha prática e ter uma “direção” na minha prática. O Mestre Dogen nos ensina a praticar o nosso zazen sem buscar nada, portanto, sem ter “metas” ou “objetivos” na nossa prática. Estar apegado a uma meta pode levar a muito sofrimento - frustração, sentimento de fracasso, pressão. O ego condicionado cobra da gente, não nós deixa em paz. Então procuro seguir os ensinamentos de abrir mão das metas e objetivos. Mas será que isto significa ficar simplesmente à deriva, solto no espaço e no tempo? Acho que não. Estudando os ensinamentos do mestre moderno, Uchiyama Roshi, no livro “From the Zen Kitchen to Enlightenment” chego a outra compreensão. Acredito que temos de ter “direção” no zazen, na prática Zen Budista e na vida, mas não “objetivos” e “metas” fixas.
A minha direção ao sentar zazen é de sentar-me em ‘shikantaza’ (”somente sentar”), da forma mais correta possível, procurando manter a plena atenção no Aqui e Agora, tentando não me permitir cair nos estados de devaneio, torpor, distração, etc., o mais que eu possa evitar. Sentar verdadeiramente em ‘shikantaza’ exige esforço! Não fico fazendo auto-cobranças do tipo “O meu zazen foi melhor ontem”, “Não consegui me focar nem um pouco hoje”, etc., tentando cumprir um “objetivo” de fazer “bom zazen”…
A direção na minha prática é de me esforçar para me aprofundar cada vez mais no “Sangaku” (trisiksa [sânscrito], or ti-sikkha [pali]) - os Três Estudos da prática budista - estudar o Darma, praticar o viver de acordo com os preceitos budistas da melhor forma possível e manter a melhor regularidade que posso no meu zazen - para alcançar a Extinção do Sofrimento - o Despertar, a Iluminação - como o Buda ensinou. Mas como sei que isto leva kalpas e kalpas de prática (aeons e aeons), não fico me cobrando, perguntando quanto é que falta para alcançar uma meta.
E a minha direção na minha vida é de viver o mais plenamente possível no Aqui e Agora e de viver de acordo com os Votos do Bodisatva. No dia-a-dia, posso ter uma direção pequena como a de lavar as minhas roupas amanhã, mas não ficarei aborrecida se a chuva me força a mudar de direção… Parte do meu viver plenamente é aproveitar de oportunidades inusitadas como essa de brincar de surfe. Subi na prancha consciente de ter uma direção de ‘aprender a surfar’, mas sem estar apegada a um objetivo de ter que conseguir efetivamente ficar em pé e surfar já nestas primeiras aulas. Assim, me diverti maravilhosamente. Agradeço profundamente a minha amiga - uma pessoa que surfa de verdade…
Gassho,
Nota: Acontece que os meus dois professores na primeira aula de surfe (veja na foto) são os autores de um livro que recomendo muito, pois é excelente e interessa todas pessoas que pratiquem a meditação (de qualquer tradição): “Neurofisiologia da Meditação“, por Marcello Danucalov & Roberto Simões, Editora Phorte